terça-feira, 1 de abril de 2008

ESTILOS MUSICAIS - II — PERÍODO DE 1550 — 1590

1) VISÃO GERAL
Entre as tendências desse período, deve-se mencionar o gradativo abandono às técnicas severas de contraponto, criadas pela escola franco-flamenga, e a paulatina substituição pelo sistema harmônico. Uma nova tendência de sentir se traduzia em expressividade intimamente relacionada à palavra, em contraste com as demais possibilidades técnicas e formais.
As idéias humanísticas entraram tardiamente no pensar e no sentir dos músicos, o que determinou o surgimento de novas formas de concepção artística. Esse tipo de manifestação buscava, por meio da chamada “música poética”, uma relação mais íntima com o espírito que reinou na Antigüidade. Esse novo conceito de música passou a percorrer os meios artísticos de então, ou seja, buscava-se inspiração nos conceitos da antiga Grécia. O tratado “L’antica musica ridotta e da moderna prattica” — Roma, 1555, de NICOLA VICENTINO (1511—1572), demonstra essa nova tendência. Em 1580, a Camerata Fiorentina propõe a recriação da tragédia grega, cujos ensaios e apresentações foram estimulados pelo conde Bardi.
Carlos GESUALDO (1560—1613), compositor italiano, e Claude le JEUNE (1528—1600), compositor francês, utilizaram o tretracorde cromático dos gregos; Roland de LASSUS (1532—1594), compositor francês, e Claude le JEUNE (1528—1600), entre outros, escreveram música sobre versos da Antigüidade.
A técnica do cantus firmus foi abandonada, e a temática, por meio de imitações, e a utilização de cadências harmônicas passaram a prosperar em todas as formas. Acentuava-se a importância da voz de soprano como portadora da melodia principal, processo que culminou no século XVII.
As diversas seções de uma obra foram marcadas pelo texto, o que valeu para quase todas as formas.
Cada seção desenvolvia uma idéia melódica própria, que era marcada pelo que se chamou de “motivo”, e que poderia aparecer diversas vezes, por um processo de imitação em todas as vozes.
Prevaleceu a tendência de se aumentar o número de vozes e de seções nas composições. Essa técnica já tinha sido experimentada por diversos compositores, como Josquin des PRÉS (1450—1521), mas foi cristalizada somente nos “Salmi Spezzati” de Adriaan WILLAERT (1480—1514), que aproveitou as galerias do órgão na igreja de S. Marcos de Veneza e compôs a obras para dois coros a quatro vozes cada um. Esse procedimento foi desenvolvido por diversos compositores que formaram a escola veneziana, entre eles: Cypriano de RORE (1516—1565), Baldassare DONATO (1530—1603), Giovanni CROCE (1557—1609), Andrea GABRIELI (1520—1586), Giovanni GABRIELI (1557—1612) e Gioseffe ZARLINO (1517—1590).

2) ESCOLA ROMANA
A chamada escola romana tornou-se totalmente independente do modelo da escola franco-flamenga.
Seu principal representante foi Giovanni-Pierluigi da PALESTRINA (1525—1594), cuja obra foi escolhida como arquétipo do estilo vocal do século XVI e tornou-se modelo para o ensino do contraponto. Isso se deve à sua qualidade artística e à técnica apurada de sua composição.

3) IMPROVISAÇÃO
A improvisação, como adorno, parece ter sido praticada com abundância até o surgimento da música polifônica. Sobre esse assunto encontram-se declarações de Charles BURNEY (1726—1814), teórico, Wolfgang Amadeus MOZART (1756—1791) e Felix MENDELSSOHN-BARTHOLDY (1809—1847), após terem escutado, na Capela Sixtina, obras dos séculos XVI e XVII, muito ornamentadas, o que atestava a prática de improvisação da época.
O exemplo a seguir demonstra o que se pode fazer no madrigal de Cypriano de RORE (1516—1565). A ornamentação é proveniente do tratado de “Dalla Casa — Le vero modo do diminuir”, 1584.




4) TRANSPOSIÇÃO
Atualmente, existe muita controvérsia se as obras devem ou não ser interpretadas na tonalidade original. Alguns maestros acham conveniente transpor; outros acham que deve ser mantida a tonalidade original.
A escrita até o século XVII concentrava ao máximo a parte de cada voz sobre o pentagrama a fim de evitar a utilização de linhas suplementares e alterações na armadura de clave.
No entanto, pode-se tolerar, em obras a cappella, a transposição para tonalidades mais convenientes caso a tonalidade original esteja nos limites ou fora do registro vocal. Hoje, os recursos vocais são muito maiores que nesse período, o que permite uma maior capacidade de adaptação às tonalidades originais. A maioria das edições modernas já está transposta. Essa prática só é tolerada para coros a cappella.

5) ALTERAÇÕES
Para as alterações de notas não previstas na armadura de clave, vale o que foi dito para o período anterior.
Cabe assinalar que existiu uma técnica, no mínimo curiosa, que perdurou até o século XVII: quando o compositor marcava uma alteração diante de uma nota sensível, esse efeito poderia afetar as demais notas de mesma altura.





6) FORMAS MUSICAIS
Missa

A técnica de composição da missa sobre um cantus firmus na parte do tenor foi abandonada
gradativamente. Em diversas obras, ainda existiam notas do cantus firmus completamente irreconhecíveis, por estarem distribuídas dentro da melodia, o que era diferente do utilizado entre as várias vozes. Grande parte das missas de Giovanni-Pierluigi da PALESTRINA (1525—1594) foi escrita segundo essa técnica.

Exemplo: Gloria da Missa Brevis

A trama polifônica de certas partes da missa, especialmente o gloria e o credo, é freqüentemente interrompida por texturas homofônicas15 e homorrítmicas, com o objetivo de dar o máximo de clareza ao texto.

Paixão
A forma paixão é a musicalização de textos bíblicos. Essa técnica foi utilizada em épocas anteriores, mas é nesse período que cresce o interesse por essa forma.
Alguns compositores, como Roland de LASSUS (1532—1594), Tomas Luís de VICTORIA (1548— 1611) e Leonhard LECHNER (1553—1606), escreveram suas paixões para coro em forma de diálogo.
Todos os personagens, e também o evangelista, são interpretados pelo coral, algumas vezes em uníssono, com a intervenção do público (turba). Em geral, esses trechos são homofônicos e homorrítmicos.


Moteto
No moteto, prevaleceu a técnica livre de composição contrapontística, com uma temática de cada vez, porém mais densa e que flui através das vozes em constantes imitações. São notáveis os motetos de Giovanni GABRIELI (1557—1612), em estilo concertante, que contrapõe a massa coral à orquestra e ao órgão.



Villanella
Forma musical muito em voga na Itália, a villanella teve origem nas danças e nos cantos populares escritos para coros a várias vozes. Caracteriza-se por uma harmonia sensível e por empregar freqüentemente seqüências de quintas seguidas e de terças paralelas, vestígio de uma antiga prática popular folclórica.

Madrigal
O madrigal surgiu no século XIV. Sua forma renascentista floresceu extraordinariamente nas mãos de Giovanni-Pierluigi da PALESTRINA (1525—1594) e Roland de LASSUS (1532—1594), assim como nas obras de outros contemporâneos seus. É considerada a principal forma musical profana para coro, resultante da poesia madrigalesca italiana e da técnica contrapontística flamenga. O madrigal foi diretamente influenciado pela frottola. Caracteriza-se pela liberdade no tratamento do material sonoro,flexibilizado pelas exigências do conteúdo poético. A polifonia substitui a homofonia e introduzem-se alterações e modulações harmônicas com o objetivo de ilustrar a palavra em suas mais requintadas inflexões.




Chanson
Nessa época, a canção francesa adquiriu maior agilidade e delicadeza, com motivos breves e declamação silábica.

Balletto
O balletto italiano provém, como indica o nome, da dança. As partes vocais podiam ser dobradas por instrumentos musicais.

Lied
O Lied alemão abandonou o cantus firmus no tenor e passou a utilizar, na melodia principal, a voz de soprano ou a voz superior.

Coral
A forma coral teve sua origem na Reforma protestante, introduzida por Martinho LUTERO (1483—1546), no serviço litúrgico, seguindo como modelo o Lied alemão. As melodias principais, em sua maioria,provêm do canto gregoriano e de fontes seculares.




O cantus firmus era, de certa forma, utilizado na linha do tenor com objetivo técnico-construtivo,como um artifício contrapontístico.
O canto protestante do Oeste e do Norte da Europa, cuja forma era mais simples, era diferente do das demais regiões européias. Clemens non PAPA (1500—1556) em seu “Souterliedeken” flamencos, canções populares flamengas, elaborou, em forma homofônica, a estrutura do coral dessa região, conservando a linha melódica na voz do tenor.
As versões do saltério de Claude GOUDIMEL (1510—1572) e de Claude le JEUNE (1528—1600)são reformas, em parte, polifônicas no estilo antigo e, em parte, estruturas homorrítmicas, com a melodia no tenor e no soprano. Essas técnicas influenciaram diversos compositores alemães, inclusive Johann Sebastian BACH (1685—1750).
A forma coral tem seu correspondente italiano na lauda.


7) SONORIDADE VOCAL
Aos poucos, com a exigência de maior expressividade, que encontrou sua materialização com o canto madrigalesco italiano, uma nova técnica de canto foi se estabelecendo: a utilização vocal em todos os registros. ROSSETTUS (1529) aconselha que a voz deve ser bem trabalhada, com contínuos exercícios para que a sonoridade vocal seja igual e bem acabada. Adrianus Petit COCLICUS (1500—1563) manifesta-se contra o hábito de levantar o dorso da língua, pois impede a fluidez da corrente de ar, a impostação nasal da voz. Lodovico ZACCONI (1555—1627) valoriza a voz mista, pois permite uma entoação mais doce. Já Heinrich FINCK (1445—1527), em seu método para canto (1556), pede uma voz doce e sonora para a interpretação do discanto e, para o baixo, uma emissão mais volumosa e forte. Isso exige das vozes intermediárias uma sonoridade idêntica, com uma suave adaptação às vozes extremas. Nenhuma das vozes deve sobressair.
No final do século XVI, abandona-se o emprego do falseto nos grupos corais e em seu lugar entram os castrati, cuja voz era mais flexível quanto à agilidade e à matização. Segundo Michael PRAETORIUS (1571—1621), os castrati possuíam sonoridade idêntica a duas ou três crianças.
Deve-se procurar diferenciar a “cor” vocal de acordo com o respectivo idioma a ser cantado. A partir da metade do século XVI, os idiomas europeus já possuíam características muito semelhantes às de hoje em dia.

8) CORO A CAPPELLA
Saber se o coro no século XVI tinha ou não acompanhamento instrumental é um assunto polêmico.
Em alguns documentos, encontram-se relatos sobre obras cantadas por coros com acompanhamento instrumental,no entanto encontram-se diversas críticas a esses acompanhamentos.
Michael PRAETORIUS (1571—1621) sugere várias formas de execução para os motetos de Roland de LASSUS (1532—1594):
a) todas as partes podem ser executadas por cantores;
b) todas as partes podem ser executadas por cantores e instrumentistas;
c) algumas vozes podem ser executadas por cantores e outras, por instrumentistas;
d) algumas vozes, por cantores em uníssono aos instrumentistas e outras, somente por cantores ou por instrumentistas;
e) os instrumentos harmônicos, como alaúde, cravo e órgão tocam o baixo e algumas outras vozes ou tocam todas as vozes superiores. O órgão tornou-se um instrumento obrigatório para o acompanhamento de coros eclesiásticos.

9) TIMBRE
O ideal timbrístico vem da perfeita fusão sonora entre as partes. Vem da interação entre cada naipe do coro, entre as diversas famílias dos instrumentos e da homogeneização das vozes e dos instrumentos. Esta é uma das funções primordiais do maestro: saber equilibrar essa sonoridade.
Em certas obras, onde há intervenção de solistas em contraste com os instrumentos que dobram as partes solistas, pode-se diminuir a quantidade de instrumentos acompanhadores ou até reduzi-los a um ou dois em cada parte.
Um outro fator timbrístico é a presença da voz feminina no coro eclesiástico, pois até então ela estava excluída, exceto em conventos religiosos de freiras e monjas, que possuíam coros femininos. Também existiam escolas de ensino musical exclusivamente para mulheres, sobretudo na Itália. Ambas as instituições foram mantidas a partir do século XVI.

10) RITMO
Em termos gerais, o que segue é a continuidade das normas utilizadas no período anterior.
Nessa época, surgiu um problema métrico que poderá causar grandes dificuldades ao intérprete de hoje. Trata-se de trechos escritos em compasso binário, intercalados por seções escritas em compassos ternários.
Para ter maior segurança na mudança do compasso, deve-se recorrer ao original, pois a maioria das edições recentes foi transcrita para a notação moderna. Contrariamente ao procedimento atual, no século XVI, a duração da unidade de tempo dos compassos binários e ternários de um mesmo movimento deve ser modificada. Se um movimento inicia em compasso binário, passando posteriormente a um compasso ternário, deve-se observar a seguinte regra geral:
a) nos compassos em 3/1, tocam-se os três tempos de um compasso ternário no lugar de um do
compasso binário anterior, na proporção de três para um.

Exemplo 1

Exemplo 2



b) nos compassos em 3/2, tocam-se os três tempos de um compasso ternário no lugar de dois do compasso binário anterior, na proporção de três para dois.

Se o maestro não dispuser de uma cópia do manuscrito original, aconselha-se a adotar o seguinte critério:
a) seguir o sentido natural da música;
b) equiparar a metade ou a totalidade de um compasso 4/4 ou a metade de um compasso 2/2
com a totalidade do compasso ternário 3/2 ou 3/4.
Isso representaria o seguinte:






Constituem uma exceção as edições modernas que possuem constantes mudanças de compasso, tentativas de descobrir a riqueza rítmica oculta por trás de uma designação uniforme dos compassos da edição original. É fácil reconhecer essa situação pela grande freqüência com que o revisor muda de compasso.
11) INTENSIDADE
Nesse período da história, não se encontram indicações de matizes nas partituras. FINK, em seu método de canto (1556), refere-se à intensidade vocal: “não é bom cantar ora com voz forte ora com voz suave”. Já Stefano ROSSETTUS ( ? —1529) aconselha o canto forte em igrejas.
É evidente que na música do século XVI existiam diferenças de intensidade, que eram provocadas pela própria textura musical:
a) muitas vozes contra poucas vozes;
b) tessitura aguda contra tessitura grave;
c) vozes com acompanhamento instrumental contra a sonoridade vocal a cappella;
d) sistema de imitação: ex.: “Ola, o che bon echo” de Roland de LASSUS (1532—1594). Esse
tipo de composição exige automaticamente uma diferença de intensidade;
e) repetições de frases breves semelhantes a um echo também pedem igualmente uma diminuição de intensidade.

12) ARTICULAÇÃO
Para a música coral, não existem indicações gráficas de articulações. Em contrapartida, tanto na música instrumental como na escrita para instrumentos de corda, existem indicações de articulações de arco por meio de ligaduras.
Dentro de um estilo tradicional, a música sacra é caracterizada por legatos. Seqüências melismáticas podem receber acentuações moderadas, como no período anterior. Na música profana, é bastante evidente a utilização do staccato ou da forma leggiero em certas passagens, como, por exemplo, em sílabas onomatopaicas ou em seqüências com os fonemas “lá, lá, lá”, por exemplo.

13) MÚSICA E TEXTO
A palavra, nesse período, adquire novo significado no contexto musical. O compositor a musicaliza com exatidão para que possua o máximo de valor expressivo. Com essa finalidade, ampliam-se todos os recursos da melodia, do ritmo, da textura, das progressões harmônicas e do timbre. Para atingir uma maior inteligibilidade da palavra, recorre-se à homofonia ou a um tipo de parlando sobre uma mesma nota.
A acentuação e a declamação das palavras é, em geral, correta dentro de um compasso. No caso surgirem dúvidas métricas e idiomáticas deve prevalecer a tendência idiomática.
Durante esse século, os idiomas europeus atingiram um muito idêntico ao atual, no que se refere à estrutura e à fonética. Surgiram grandes obras gramaticais, testemunhando que o homem culto da época tinha adquirido uma consciência da estrutura de seu idioma.
É lógico que, ao se estudar uma partitura, nem sempre se pode confiar na correta distribuição das sílabas debaixo de cada nota, visto que as técnicas de impressão da época não eram tão avançadas quanto são hoje. É por esse motivo que o maestro possui uma certa liberdade para realizar correções ou procurar edições modernas de qualidade, que já foram corrigidas.


Extraido do livro: MARTINEZ, Emanuel - REGENCIA CORAL - princípios Básicos - Editora D. Bosco, Curitiba (2000)

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