quarta-feira, 9 de setembro de 2009

ENSINANDO REGÊNCIA CORAL

ENSINANDO REGÊNCIA CORAL por Eduardo Lakschevitz

Introdução
O objetivo deste estudo é investigar algumas possibilidades de temas visando à montagem do conteúdo programático da Classe de Regência Coral, do Instituto Villa-Lobos/UNI-RIO, uma vez que, recentemente, comecei a lecionar tal classe, bem como assumi a responsabilidade pela disciplina. Após analisar as ementas dessa matéria em duas universidades cariocas, me surge como fator de fundamental importância o estabelecimento de prioridades com relação aos assuntos tratados na mesma.

Entre os elementos envolvidos na formatação desse curso, alguns têm natureza invariável, como a duração de dois semestres do curso (que podem ser consecutivos ou não), a carga horária (30 horas semestrais) e o espaço físico (uma sala com piano, quadro negro e alguns espelhos). Outros são flexíveis, como o número de alunos aceitos por semestre, a colocação desse curso na grade curricular geral do aluno (há poucos pré-requisitos), o sistema de avaliação e o conteúdo programático.

Como, então, organizar esse programa de forma que, nas condições descritas acima, promova o desenvolvimento técnico do aluno, mas que seja também incentivador da criatividade e flexibilidade cada vez mais necessárias ao profissional de música nos dias de hoje? Qual dessas propostas é a mais importante? Como desenvolver uma ordem de prioridades num curso tão curto? Os alunos, em sua grande maioria, são matriculados no curso de licenciatura, para quem o conteúdo dessa cadeira pode se transformar numa eficiente ferramenta de trabalho, mas também, facilmente pode se encaixar numa prateleira com o rótulo “coisas que precisei aprender, mas que nunca mais usarei”.

Aqueles que, eventualmente, trabalharão como regentes de coro, provavelmente iniciarão suas atividades profissionais à frente de grupos de cantores inexperientes, fato no qual reside uma das principais questões do presente estudo: a regência de um grupo coral implica na comunicação de idéias do regente para o coro que, para existir, pressupõe um código em comum entre as partes envolvidas. Ora, se o resultado final de toda essa atividade é uma mensagem auditiva que o grupo (sob a liderança do regente) transmite ao seu ouvinte, a comunicação entre regente e coro deve ser de natureza não-verbal. O código em comum de que falamos relaciona-se, então, com gestos e movimentos.

Freqüentemente mencionada por Phillip Tagg, a dificuldade do mundo acadêmico em entender aspectos subjetivos da prática musical, “uma vez que gostamos mais de números e letras” (Tagg, 1999), é perfeitamente ilustrada nesse curso, do qual são esperados conteúdo, metodologia e avaliação para uma atividade duplamente subjetiva – primeiro por se tratar de música, e, mais ainda, por se tratar de representação não-sonora dessa música.

Na verdade, essa dificuldade incomoda também outros autores, como podemos perceber nas palavras de Samuel Kerr (1): “Outro dia fui solicitado a programar um Curso de Regência Coral.

Imaginem a minha dificuldade. Não acredito em curso de regência. Regência coral não se ensina! Quando muito, se ensinam padrões de regência, convenções estabelecidas, que foram funcionais em algum momento”. E também de Barry Green (1999): “Sinto que há algo de injusto em tentar ensinar certo ofício (ou aptidão) através de palavras. Aprendemos muito mais quando aprendemos através de nossos sentidos e experiência”. (2)

A questão do pouco tempo letivo disponível também deve ser encarada com grande consideração, mas, na verdade, é uma das características da vida social pós-moderna, tal como defendida por Domenico de Masi (2000), onde os espaços de tempo para atividades de trabalho em conjunto serão cada vez menores. É uma situação enfrentada pelo professor da Classe de Regência Coral, mas que provavelmente afetará cada aluno que vier a reger um grupo coral. Mesmo no ambiente da música orquestral a escassez de tempo se faz digna de nota: “algumas das maiores habilidades do regente moderno são demonstradas nos ensaios, que, em função de seus custos, são sempre poucos, especialmente nos Estados Unidos...” (Harvard Dictionary, 1986, p.192). (3)

Antes de mais nada, urge pensarmos um pouco nas principais atribuições do regente coral; nas funções da atividade para a qual o aluno se dispõe a iniciar um processo de preparação (que, uma vez engajado, terá caráter permanente).

A função do regente coral
Uma história curiosa me foi relatada pela violinista britânica Micaela Comberti (4), em uma de suas visitas ao Brasil. Disse ela que há algum tempo aceitara convite de uma universidade norte-americana para dirigir um concerto com repertório do período barroco. No texto da carta-convite, a expressão “to lead an orchestra” foi utilizada. Depois de longa viagem, ao
chegar ao teatro da universidade para seu primeiro ensaio, encontrou já montados um pódio e uma estante de regente, o que lhe causou grande estranheza. Acontece que a expressão “to lead an orchestra” é normalmente utilizada na Inglaterra para designar a função do spalla da orquestra que dirige um concerto ao mesmo tempo em que toca seu instrumento, atividade muito comum em grupos que executam repertório barroco ou mesmo clássico. Por um outro lado, também na Inglaterra, o termo “to conduct an orchestra”, denota a figura do maestro no
pódio (a quem alguns autores chamam de “regente moderno”). Aparentemente essa diferença sintática não é tão marcante nos Estados Unidos, o que gerou o engano. Depois de desfeito o mal-entendido, a violinista dirigiu o concerto da maneira com a qual estava mais acostumada.

Independente da forma, da posição do regente diante do conjunto, ou mesmo da utilização ou não de um instrumento, vale ressaltar que sua capacidade para liderar a orquestra foi o elemento mais importante da atividade que realizou.

Essa questão sintática na língua inglesa é, ainda, muito interessante se levarmos em consideração uma opinião de John Eliott Gardiner, que faz analogia à eletricidade ao descrever a atividade em questão:

“a palavra ‘conductor’ (5) é muito significativa pois a idéia de uma corrente sendo realmente passada de uma esfera para outra, de um elemento para outro é muito importante, e é também grande parte do trabalho e da arte do regente” (Nakra, 2000). (6)
Aqui, a idéia de transmissão de mensagens do regente para seu grupo soma-se à capacidade de liderança como a principal função do regente.

Em O ócio criativo, texto no qual procura mostrar o fim da sociedade industrial e início de uma nova era dita pós-moderna, Domenico de Masi (2000) apregoa uma mudança radical nas relações de trabalho. A figura do gerente como supervisor do processo criativo não seria mais necessária uma vez que, através de uma série de mudanças que já podemos perceber em nossa sociedade, o próprio executor do trabalho seria capaz de fazê-lo diretamente, cortando, assim, pelo menos uma camada hierárquica nas instituições. De todos os focos de resistência a esse processo de mudança, um dos mais fortes seria o corporativismo. Seguindo o autor, gerentes não abrirão mão facilmente de seus postos, mesmo cientes de sua potencial inutilidade
(Masi,1999).

Se imaginarmos a situação acima no microcosmo de um grupo coral, onde o regente se equipara ao gerente descrito, poderemos chegar a uma ótica mais aproximada da função real do regente. Perceberemos que este deve se esforçar constantemente para identificar quais de seus procedimentos são absolutamente necessários no exercício de sua liderança, tornando, assim, sua presença um fator imprescindível ao funcionamento de sua comunidade, o coro. É a atitude oposta ao abuso de autoridade.

“O melhor regente é o não-regente”, costuma dizer o Prof. Gary Hill (7) aos seus alunos de regência, que, num primeiro momento, recebem a informação com um misto de indagação e até mesmo espanto. “O regente nunca é neutro: ele necessariamente está ajudando ou atrapalhando a produção da boa música”, continua ele, insistindo na importância da liderança.

“Qualquer gesto seu, voluntário ou não, tem grande influência no produto final”.

Durante os concertos do III Simpósio da IFCM (International Federation for Choral Music), acontecido em Vancouver, Canadá, em 1993, chamou-me a atenção o grande número de coros cujos regentes pareciam cautelosos quanto aos “excessos” de sua atividade. Alguns até mesmo retiravam-se da frente de seu grupo, evitando, assim, quaisquer tipos de movimentos supérfluos.

Mas como estudar essa atividade em termos mais objetivos? Como tais aspectos se tornam palpáveis, inteligíveis para o aluno? É comum observarmos como questões relativas à métrica e ritmo são freqüentemente lembradas, como faz Richard Wagner, num ensaio publicado
sobre o assunto, ainda no século XIX:

“A essência de todo o trabalho do regente está contida em sua habilidade de indicar os tempi corretos. Sua escolha de tempi irá mostrar se ele realmente entende ou não uma determinada obra.” (Wagner, 1887, p.20 ) (8)

Sozinha, porém, a preocupação exclusiva com métrica e com ritmo não encontra sustentação, pois, como aponta James Jordan, há outros elementos envolvidos na atividade musical que têm, inclusive, sido esquecidos com grande freqüência nos programas dos cursos de regência coral:

“O maior dilema com relação aos padrões de regência é que os mesmos são freqüentemente ensinados sem conexão com o som; são ensinados como exercícios geométricos desenhados no ar, sem a presença do elemento sonoro. Padrões deveriam ser reflexo do som em todas as suas dimensões, i.e., cor, linha, características rítmicas e forma geral das frases”. (Jordan, 1996, p.114) (9)

A abordagem objetiva da questão sobre a função do regente acaba, então, por sugerir dois caminhos mais comuns: o primeiro ligado ao ensino dos padrões gestuais de regência (10), e o segundo alinhado com o desenvolvimento de um conceito ampliado de expressão gestual. Há
ainda, como veremos a seguir, distinções importantes a ser feitas entre os momentos de ensaio de um coro e de apresentação pública. No caso do IVL, entretanto, questões relativas ao ensaio coral são especificamente tratadas na cadeira Prática de Regência Coral, consecutiva ao curso em questão neste estudo.

Os padrões gestuais da regência coral
Consultando as ementas dos cursos de regência coral para alunos de licenciatura das duas universidades públicas cariocas que o oferecem (UNIRIO e UFRJ), verificamos forte tendência à abordagem dos padrões de regência como tema principal, relacionado-os a esquemas métricos simples e compostos, bem como suas subdivisões.

Podemos localizar entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do século XIX a figura do regente de pé, no pódio à frente da orquestra, utilizando ou não uma batuta, fato que muito provavelmente solidificou a importância dos padrões gestuais. (11) Curiosamente, mesmo tendo sido a atividade coral iniciada muitos séculos antes desse período, tendemos a nos utilizar dos mesmos padrões que se solidificaram devido a questões mais pertinentes à música instrumental, tais como o aumento da densidade textural, da variação dinâmica, das sutilezas de fraseado e mesmo das proporções da instrumentação. Verificamos, ao estudar a regência e liderança de grupos musicais em diferentes períodos históricos, diversas maneiras para a sua realização, que, em comum têm sempre o intuito de otimizar a comunicação do evento musical. A quironomia, por exemplo, método que sugere movimentos circulares do regente (12), é o método mais utilizado para a direção do canto gregoriano, pois empresta mais valor ao contorno melódico que à precisão rítmica, exatamente a principal característica desse repertório. Na polifonia renascentista, o movimento vertical do braço do regente (ou do rolo de papel, como mostram alguns quadros), denominado tactus, serve como referência para as várias linhas melódicas combinadas. No teatro francês do século XVII, batidas de bengala no chão serviam como referência rítmica, mostrando ainda uma tendência comum em algumas passagens da história da música, de uma direção não-silenciosa.

Essas são apenas algumas referências de métodos que se mostraram funcionais para seus objetivos específicos, sem a utilização dos modelos e padrões modernos de regência. Em comum, têm a busca pela representação mais exata possível do elemento mais importantes em cada contexto musical. Vale voltarmos à afirmação de James Jordan (1996) mencionada acima, que sugere ser incompleta uma formação calcada somente nos padrões gestuais, mesmo que esta reforce os fatores rítmicos tão caros aos grandes autores (inclusive ao próprio Jordan).

Essa tendência é também demonstrada em grande parte da literatura do século XX a respeito do assunto. Grande parte do material de referência mostra a utilização dos padrões gestuais como sua espinha dorsal, não importando nem mesmo seu local de edição. De forma geral, os desenhos desses padrões acabaram por constituir símbolos de entendimento quase unânime no mundo ocidental. Sua eficiência é confirmada não somente por sua utilização até os dias de hoje – há quase dois séculos os mesmos gestos têm o mesmo significado – mas também por sua já mencionada “universalidade” (o primeiro tempo em movimento descendente vertical, por exemplo, é compreendido pro grande parte dos músicos no mundo). Mesmo o aparecimento de diversas escolas e variantes, surgidas no decorrer do século XX – como nos demonstram os diagramas apresentados por Elizabeth Green (1987, p.18) – não subtraem tais características dos padrões de regência.

“Mesmo que a atividade coral realmente alcance a platéia ou congregação na apresentação pública, é, na verdade, nos ensaios regulares que a experiência coral encontra sua identidade verdadeira; colocado de maneira mais simples, o local da verdadeira experiência coral é o ensaio. É aqui, sob a direção de um regente inspirador, que um grupo coral com sensibilidade desenvolve sua psiqué.”(13) (Robinson, 1976, p.153-154)
O comentário acima chama a atenção por alguns aspectos específicos. No excelente livro The Choral Experience, Ray Robinson faz grande distinção entre ensaio e performance, mas conecta de forma íntima os resultados dos mesmos. Entretanto, menciona as questões relativas ao ensaio coral propositadamente depois de já ter comentado vários aspectos técnicos da atividade do regente (incluídos aí os padrões gestuais), sugerindo uma certa ordem de prioridades. Comenta também a desproporção significativa do tempo de duração dos mesmos (14).

Já discutimos em outro texto (Lakschevitz) (15), a possibilidade de durações cada vez menores dos ensaios de coros em nossos dias, bem como uma necessidade latente de adaptação do regente às características da vida moderna. Tal idéia implica numa necessidade de comunicação cada vez mais eficaz, entre regente e coro. Ora, se, como vimos anteriormente, não são todos os cantores os que possuem a habilidade de entender o código dos padrões, torna-se ainda mais importante o desenvolvimento de outras capacidades de expressão
gestual, pois acaba se estabelecendo uma relação muito mais intuitiva na comunicação gestual entre regente e coro. Mais ainda, o aprendizado e adestramento (termo utilizado em uma das ementas referidas) nos padrões gestuais, desconectado de uma situação musical pode, ainda, levar ao “perigoso envio de mensagens contraditórias por parte do líder” (Schultz) (16), comprometendo, assim, a eficácia esperada de sua comunicação.

Ampliando o “vocabulário gestual”
Mesmo atuando no campo da música coral há muitos anos, comecei a pensar mais seriamente nessa abordagem gestual de caráter mais amplo quando fui convidado a reger o coro numa grande igreja batista na Cidade de São Paulo, onde, durante o culto dominical, há tradução simultânea para deficientes auditivos. Após o culto, vários deles me procuraram para conversar em linguagem de sinais, certos de que eu a dominava, por terem visto o tipo de gestual utilizado na regência daquele coro. Apesar de ter lidado com um coro de certa experiência – mesmo os que não liam fluentemente a partitura viviam num ambiente onde a música vocal era muito comum – o pouquíssimo tempo de atividade em conjunto de que dispunha exigia de mim, aliado à precisão de movimentos, o máximo de expressividade gestual. Apesar do constrangimento momentâneo, um intérprete logo ajudou-me a explicarlhes a situação. Desde então uma comunicação gestual eficiente confirmou-se, no meu entender, como uma das ferramentas de trabalho mais importantes do regente coral.

Estudiosos do significado das expressões gestuais e faciais humanas, Paul Ekman e Wallace Friesen (1969) classificam em cinco categorias os tipos de mensagem que podem ser compreendidas de ações não-verbais:

a) emblemas: gestos que denotam um significado preciso, conhecido pela maioria dos membros de uma determinada cultura (Ex. os padrões de regência);

b) ilustradores: movimentos utilizados para reforçar uma idéia (Ex. apontar para um objeto);

c) mostradores de afeto: expressões faciais

d) reguladores: gestos utilizados com freqüência, quase que automaticamente (Ex. aceno de cabeça, para indicar ou uma troca de olhares com o intuito de estabelecer comunicação); e

e) adaptadores: movimentos quase automáticos, involuntários, mas que se tornam fonte de indicações psicológicas sobre indivíduos (Ex. mexer os dedos ou bater os pés indicando impaciência ou nervosismo).

A inter-relação entre movimentos de todas essas categorias e o trabalho do regente são quase óbvias, mas o que nos chama atenção no momento é o fato de somente uma delas ser relacionada ao padrões de regência. Em outras palavras, os estudos de Ekman e Friesen apontam a importância de muitas outras questões que podem ser relacionadas à atividade do regente, o que sugere ser incompleto o ensino puramente técnico desses padrões, mesmo levando em consideração o pouquíssimo tempo do curso que discutimos neste texto. O controle dessas categorias de movimento pode ser uma ligação preciosa entre o controle rítmico e outros aspectos expressivos envolvidos na produção musical.

São também pertinentes a essa discussão os conceitos de anafonias cinéticas e tácteis, criados
por Phillip Tagg (1999). Segundo o autor, “anafonia significa a utilização de modelos existentes na formação de sons (musicais)”. (17) Entretanto, ao desenvolver esses conceitos, Tagg empresta um sentido que aparenta ser formulado, em termos semiológicos, do ponto de vista estésico, receptor da mensagem: sensações humanas criadas (ou motivadas) por determinadas músicas e sonoridades. Em discussão nesta turma (18), chegamos até mesmo a chamar o autor, de forma bem-humorada, de “o semiólogo do estésico”.

Tagg menciona as anafonias tácteis como aquelas que têm conexão com diferentes texturas: “string pads podem produzir efeitos de textura sônica homogênea, grossa, rica, viscosa...” (19)

Já as anafonias cinéticas são aquelas que se relacionam com o corpo humano no tempo e no espaço, mas que também podem ser visualizadas em movimentos de animais, de diferentes objetos, ou de movimentos descritivos que fazemos para descrever objetos. “Até mesmo uma total quietude pode ser expressa pela anafonia cinética, através da “absoluta falta de tempo metronômico, em relação à regularidade dos batimentos cardíacos, à periodicidade da respiração etc.” (20) Qual seria o resultado, entretanto, se invertêssemos a ordem da comunicação sugerida, estudando os efeitos de determinados movimentos e gestos na produção sonora? Quais os efeitos cinéticos de alguns gestos no fenômeno sonoro? Apesar de não estarem aparentemente conectados, os trabalho de Tagg e do dançarino e coreógrafo húngaro Rudolf von Laban mostram interessantes pontos em comum.

Laban entende que o “vocabulário de movimentos” do ser humano vai diminuindo com o passar do tempo. Enquanto crianças, brincamos e nos movimentamos com muita freqüência, mas, conforme amadurecemos, começamos a nos movimentar cada vez menos.

Estabelecemos, então, um conjunto limitado de movimentos eficazes e, gradativamente, vamos nos esquecendo de todos os outros (mas não os perdendo), os quais, apesar de espontâneos, consideramos supérfluos. Em seu livro Evoking Sound (1996), James Jordan lembra que, em parte, o trabalho de análise de movimentos desenvolvido por Laban consiste em descobrir de quais movimentos uma pessoa não mais se lembra, para, assim, reavivá-los.

Jordan menciona diversas implicações diretas que as idéias de Laban podem ter sobre a construção do vocabulário gestual do regente coral, baseando-se, principalmente, nos aspectos
“espaço”, “peso” e “tempo”, característicos dos esforços feitos para a realização de cada movimento. Mostra, então, uma tabela onde movimentos são classificados (21) de acordo com os aspectos citados:

Figura 1: “Esforços em combinação para descrição de movimento” (Laban)

Na ilustração acima, aparecem entre parêntesis os aspectos aos quais se referem as qualidades
citadas em cada movimento (espaço, peso e tempo). Jordan faz menção à utilização dessas idéias como uma maneira possível de desenvolver a expressividade gestual do regente.

Porém, em conseqüência desse trabalho, outras questões são levantadas, especialmente aquelas relacionadas ao aspecto rítmico, justamente o elemento de maior importância nos modelos de ensino de regência baseados em padrões gestuais. “Ritmo é uma manifestação de tensão e repouso que criam pontos de referência, os quais comumente chamamos de métrica”. (22)

Mesmo não sendo ligado à música coral, o trabalho de Itiberê Ztweg nos fornece, também, clara ilustração de meios não-convencionais de exercício da liderança sobre um grupo musical. Num concerto da Itiberê Orquestra Família, recentemente transmitido pela TVE, percebe-se não só a ausência de freqüentes padrões gestuais, como também, em alguns momentos, a ausência total de gestos de direção. Muitas vezes, inclusive, o som produzido aparenta ser a maior motivação dos movimentos do regente, como se esse dançasse com a música que ouve. Em texto sobre observações de ensaios do grupo mencionado, José Alberto Salgado e Silva ressalta, entretanto, a forte liderança exercida pelo maestro. Entre as bases para tal estão citadas a profunda admiração dos músicos pelo seu regente, os métodos meticulosos de ensaio e preparação e uma “argumentação de fundo moral”. Como o próprio Itiberê sugeriu em entrevista (Silva, 2001), “foi feito um pacto de sangue, um negócio muito sério. Se não for assim, a coisa escorre entre os dedos”. Provavelmente, as mensagens gestuais transmitidas pelo regente ao grupo já estão bem codificadas. Se alguma vez, entretanto, o referido regente for atuar à frente de um grupo que não o conhece, naturalmente precisará recorrer a um código comum, que, poderá ser o padrão gestual da regência.

Estudos que relacionam expressão humana com movimentos e gestos, bem como suas aplicações em regência e interpretação musicais, são comuns em diversas áreas do saber.

Escritos deixados pelo ator francês Fraçois Delsarte (1811-1871) já mostram interesse no assunto, em análises que fazem referência até mesmo ao teatro grego. Atualmente, tais investigações incorporam também meios de alta tecnologia, como no caso do projeto The Conductor´s Jacket, desenvolvido por Teresa Marrin Nakra (2000) no Massachussetts Institute of Technology (MIT), que identifica minuciosamente a atividade muscular de um regente e suas conexões com o texto musical – sua interpretação propriamente dita – através de eletrodos instalados em sua casaca.

Há problemas que poderão decorrer, entretanto, de uma abordagem mais ampla da questão gestual sem um mínimo de atenção aos padrões de regência. São questões relacionadas, primeiramente, com a não-universalidade da expressão. Já mencionamos os prováveis benefícios da ampliação dessa abordagem no trabalho com coros amadores, mas uma vez à frente de cantores experientes, será exigida do regente um conhecimento técnico do código
universal, i.e. dos padrões de regência, em nome da eficaz utilização do tempo de ensaio. Tal exigência também virá à tona em música de alta complexidade rítmica ou textural, onde entradas, cortes e movimentos precisos são de fundamental importância. Até mesmo num ambiente onde regente e coristas não falam a mesma língua (literalmente), esse pode vir a ser o único código para a comunicação entre eles.

Conclusão
O problema central, como constatado nesta pesquisa, da preparação do aluno de regência coral, reside na transformação (e até mesmo a elevação se seu status) dos padrões gestuais, passando a ser, muitas vezes, não uma ferramenta de trabalho (indispensável ao regente coral, é verdade), mas sim o objetivo final dessa atividade. Aqui não cabe, entretanto, uma solução única, para a questão apresentada, pois o desenvolvimento deste estudo, ao contrário de fornecer respostas definitivas às questões que o originaram, mostrou muitas outras óticas sobre o problema, fato devido, principalmente, à subjetividade do tema.

A semiologia é, atualmente, uma das áreas a se dedicar ao estudo da relação comportamento –
gesto – linguagem. Numa pesquisa posterior, pretendemos analisar a mesma questão mediante as teoria semiológica de J. J. Nattiez. Entendendo o regente como um intérprete de determinada obra, sua atividade se encaixa no pólo estésico ou poiético da produção musical?

Qual é, necessariamente, o nível imanente, se a partitura (papel e tinta) pode ser modificada de acordo com a situação, principalmente no caso de coros amadores? Provavelmente serão questões para as quais as respostas aparecerão, como no presente estudo, de maneira subjetiva, ou mesmo em forma de outras questões.

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Notas de Rodapé

(1) Samuel Kerr. Carta Coral. In: Ensaios: olhares sobre a música coral brasileira. Rio de Janeiro: Oficina Coral, 2006.

(2) I feel there is something almost unfair about trying to teach a skill by putting it into words. We learn so much more when we learn through our senses and experience.

(3) Some of the most essencial skills of the modern conductor are displayed in rehearsals, which, because of their expense, are often kept to a minimum, especially in the U.S....

(4) Durante a XIX Oficina de Música de Curitiba, em janeiro de 2001.

(5) A tradução literal do termo “conductor” para o português seria “condutor” como se tivesse o significado de “regente”, ou “maestro”.

(6) “the word ‘conductor’ is very significant because the idea of a current being actually passed from one sphere to another, from one element to another is very important and very much part of the conductor´s skill and craft.”

(7) Professor de regência instrumental na Arizona State University, foi um dos meus mestres, na década de 90, na
University of Misouri-Kansas City, EUA.

(8) The whole duty of a conductor is comprised in his ability always to indicate the right tempi. His choice os
tempi will show whether he understands the piece or not.

(9) The biggest dilemma concerning conducting patterns is that they are most often taught devoid of sound; they are taught as geometric exercises of sketching patterns in the air without sound being present. Patterns should be a reflection of sound in all its dimensions, i.e., color, line, rhythmic characteristics, and overall phrase shapes.

(10) Usaremos aqui os termos “padrões gestuais” ou “padrões de regência” para designar os movimentos que designam os diversos tipos de compasso, utilizados pelos regentes.

(11) Carl Maria von Weber é frequentemente citado como o primeiro a assumir, em 1817, a função do maestro no sentido moderno, i.e., utilizando a batuta, à frente da orquestra, sem tocar o violino ou mesmo instrumento de teclado. (Harvard Dictionary)

(12) Curiosamente, uma das grandes críticas de instrumentistas com relação à falta de clareza no gestual de alguns regentes é exatamente o excesso de movimentos circulares.

(13) While choral singing reaches the audience or congregation in the public performance, it is, in reality, in the regular rehearsal that the choral experience finds its true identity; put more simply, the location of the choral experience is the rehearsal. It is here, under the direction of an inspiring conductor, that the sensitive choral ensemble develops a group phyche.

(14) Seria interessante uma pesquisa entre regentes corais a esse respeito, na qual o resultado verificaria o nível da desproporção entre o tempo de duração entre ensaio e performance: quanto tempo de ensaio é realizado para cada minuto de música em uma apresentação?

(15) Monografia apresentada à disciplina Seminários de Música I, na UNIRIO, em agosto de 2003.

(16) Trabalho apresentado à disciplina Introdução à pesquisa e bibliografia, na Universidade de Missouri – Kansas City, em abril de 1993.

(17) Anaphone means the use of existing models in the formation of (musical) sounds.

(18) Música Brasileira Urbana e Rural, ministrada pela Prof. Elizabeth Travassos no segundo semestre de 2003.

(19) String pads can produce the effect of homogeneous, thick, rich, viscous sonic texture…

(20) Even stillness can be expressed by kinetic anaphone through the very lack of explicit metronomic time in relation to the regular beats of the heart, the regular periodicity of breathing etc.

(21) Mantive nessa ilustração os nomes das ações na língua inglesa por considerá-los, de certo modo, palavras onomatopaicas.

(22) Rhythm is a manifestation of tension and release that provide points of reference that we commonly refer to as meter.

Referências bibliográficas

CONDUCTING. In: RANDEL, Don Michael (Ed.). The new Harvard dictionary of music. Cambridge: Belknap Press, 1986.

GREEN, Barry & GALLWEY, Timothy. The inner-game of music. Nova York: Doubleday, 1986.

GREEN, Elizabeth. The modern conductor. 4a. ed. Englewood Cliffs: Prentice-Hall, 1987.

EKMAN, Paul & FRIESE, Wallace. The repertoire of non-verbal behavior: categories, origins, usage, and coding. Semiotica, Berlim, n.1, p. 49-98, 1969.

JORDAN, James. Evoking sound. Chicago: GIA Publications, 1996.

KERR, Samuel. Carta Coral. In Ensaios: olhares sobre a música coral brasileira. Rio de Janeiro: Oficina Coral, 2006.

LABAN/BARTENIEFF INSTITUTE OF MOVEMENT STUDIES.
Disponível em Acesso em 10 jan 2004.

LAKSCHEVITZ, Eduardo. O regente coral no século XXI. Material não-publicado.

MASI, Domenico de. O ócio criativo. 6a. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.

NAKRA, Teresa Marrin. Inside the conductor’s jacket: analysis, interpretation and musical synthesis of expressive gesture. 2000. Tese (doutorado em ciências da comunicação) – Escola de arquitetura e planejamento, Massachusetts Institute of Technology.

ROBINSON, Ray, WINOLD, Allen. The choral experience. Prospect Heights: Waveland Press, 1976.

SCHULTZ, Andrew. Expressive conducting through cognitive kinesic awareness. Material não-publicado.

SILVA José Alberto Salgado e. Observações sobre uma orquestra. Cadernos do Colóquio – Publicação do Programa de Pós-Graduação em Música do Centro de Letras e Artes da Uni-Rio, Rio de Janeiro, ano I, abril de 1999.

TAGG, Philllip. Introductory notes to the semiotics of music. Versão 3. Liverpool/Brisbane, 1999.

WAGNER, Richard. Wagner on conducting. Traduzido por Edward Dannreuther. Nova York:
Dover Publications, 1887.

WHAT you see is what you get. Chapell Hill (EUA): Hinshaw Music, 1988. 1 fita de video
(1hr.18 min), son, color, VHS.

5 comentários:

Anônimo disse...

Caro Emanuel,

é uma honra conhecer seu Blog....sempre fui ligado a música....em geral POP...atualmente estou aprofundando minha pesquisa na musica classica....tenho um Blog "minervapop.blogspot.com"....dobre assuntos diversos....

Parabens

Anselmo - Minerva Pop

EMANUEL MARTINEZ disse...

Obrigado Anselmo. Fique à vontade para passear por todos os BLOGS. Abraços

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
luana kent disse...

Ola.Ensinei minha filha a gostar de musica e hoje ela quer cursar regencia mas não sei quais os pré-requisitos necessarios.
Para cursar regencia ela tem que tocar muitos instrumentos? Presta vestibular?
Não sei muita coisa sobre o curso em questão. Se o Sr.puder me explicar eu agradeço.
Meu novo mail :
Luanakent1@hotmail.com

Anônimo disse...

Achei seu Blog por acaso. Fui aprovada para realizar o curso de REGENCIA DE CORO no Conservatório Carlos Gomes - Belém-Pará e desejo aprender também por aqui mais sobre Regencia.
Parabéns ADOREI seu Blob
muito SUCESSO!

Margriet