quarta-feira, 9 de setembro de 2009

COMO FAZER OU POR QUE FAZER?

COMO FAZER OU POR QUE FAZER? por Eduardo Lakschevitz

Durante os últimos cinco anos tive a oportunidade de dirigir um grupo maravilhoso de cantores, o coro Kolina. Nesse tempo, um fato acontecido repetidas vezes em nossas apresentações me provocou a presente reflexão.

Nas muitíssimas ocasiões em que nos apresentamos nas igrejas protestantes do Rio – o grupo especializou-se em música sacra – nossos ouvintes nos abordavam ao final da cantoria sempre com uma palavra de apoio e também de agradecimento, criando momentos muito felizes, de valiosa troca entre cantores e ouvintes. Nessas horas era freqüente alguém a mim se dirigir com lágrimas nos olhos, dizendo: “- Cantei no coro do seu avô e agora, ouvindo o Kolina, aqueles bons tempos me voltaram à mente!”.

Imigrante chegado da Letônia na década de 20, meu avô Arthur foi um dos responsáveis por grande parte do desenvolvimento da música coral na igreja protestante brasileira, atuando durante anos a fio como regente, professor, compositor e editor, atividade que, de tão intensa, tornou seu nome bastante conhecido nesse meio. O que mais me fascina, entretanto, ao ouvir os comentários desses senhores e senhoras que o conheceram, é entender que seu trabalho ainda hoje provoca emoções dessa ordem.

Melhor ainda é pensar que eu acabei abraçando sua profissão, uma arte que, em sua capacidade de unir criatividade e relacionamentos, me proporciona a preciosa oportunidade do convívio diário com pessoas dispostas a compartilhar sua sensibilidade. Enfim, exerço uma atividade capaz de emocionar as pessoas décadas mais tarde.

No entanto, não posso me furtar ao exercício de imaginar como seria um ensaio do Vô Arthur hoje em dia. Como funcionaria seu estilo? Como dirigiria um ensaio? Será que abriria mão de algumas convicções?

A imagem que sempre guardarei dele é aquela do homem bonzinho, que me deixava tomar sorvete antes do almoço e que me dava presentes mesmo quando não era Natal nem meu aniversário. Sei, porém, através dos que com ele trabalharam, que tratava-se de um regente muito sério e metódico.

Não somente por seu hábito de ensaiar sempre de paletó e gravata, mas também por sua postura em atividades práticas, tais como a escolha de solistas, a relação com pianistas acompanhadores e a seleção do repertório. “Disciplinador” é um adjetivo comumente associado ao seu estilo de trabalho. “- Com ele não se brincava em ensaio. Música era coisa muito séria”, dizem, ainda, os que o conheceram.

Apesar de pertencermos a gerações distintas, nossos trabalhos deixam transparecer ideais análogos, no entendimento da música coral como meio para alcançar objetivos maiores, como poderosa ferramenta para comunicação de uma mensagem, ou como forma valiosíssima de educação tanto de jovens quanto adultos. Porém, mesmo pensando de forma tão semelhante, a distância entre nossas gerações se mostra nítida e forte se compararmos os métodos e ferramentas utilizados para alcançar nossos objetivos. Mas por que é isso é tão marcante? Quais as diferenças entre os grupos do seu tempo e aqueles com os quais trabalho hoje em dia?

Uma presente instabilidade de nossas instituições é assunto corriqueiro em discussões sobre a pósmodernidade.

Parece que vivemos um tempo de constante mudança, e podemos perceber essa preocupação em reflexões de diversos autores. Meyer (i) (1994), por exemplo, observando a rapidez do aparecimento de diferentes estilos de produção artística nos últimos anos, sugere que os tempos vindouros serão provavelmente marcados não pelo desenvolvimento linear de um único estilo, mas pela coexistência de múltiplos e diferentes estilos, num estado de flutuação dinâmica – uma stasis.

Também Topping (ii) (2002), escrevendo para líderes corporativos diz que “as organizações se encontram em constante estado de transição. Não se trata de fenômeno pouco duradouro nem de algo a ser gerenciado no processo de criação do novo status quo. A transição é o status quo, se isso é possível. O chão está em constante movimento irregular sob nossos pés, e tudo indica que não parará tão cedo”.

Nada mais natural, então, que estejamos em estado de alerta, analisando constantemente o que se passa ao nosso redor, mas não somente com relação aos aspectos técnicos do nosso ofício. Numa sociedade cada vez mais competitiva, precisamos ser excelentes regentes e músicos do mais alto gabarito, mas também nos é necessária uma capacidade de fomentar em nossa comunidade a compreensão da importância e do potencial da música coral. Precisamos dar um novo sentido ao termo “formação de platéia”, tão presente em projetos de captação de recursos.

Infelizmente, a julgar pelas discussões que tenho presenciado, por perguntas de alunos, comunicações em congressos, ementas escolares, ou mesmo pelos pedidos que chegam à Oficina Coral, tendo a pensar que estamos (nós, regentes corais) interessados em assuntos de caráter mais técnico, mas que de forma alguma correspondem à plenitude de nossas atividades. Com maior freqüência nos perguntamos como fazer ao invés de por que fazer.

Recentemente ouvi de um colega regente, de quem admiro a grande competência e também a objetividade, a seguinte frase: “Se alguém começar a falar em diafragma de novo, eu vou embora. Não agüento mais isso!” Carregada de fina ironia, a idéia de meu colega expressa exatamente a nossa necessidade dessa análise crítica que mencionei acima, do constante estado de alerta. Do alto de sua grande experiência, ele confirma que, em música coral, assuntos puramente técnicos devem andar em parceria com suas aplicações e suas finalidades.

Ano passado, durante um workshop (iii) do qual fui um dos facilitadores, propus algumas considerações a respeito da música coral no Brasil do século XXI. Tive a oportunidade de provocar debates sobre temas não necessariamente técnico-musicais (apesar de ligados à nossa profissão) e, até mesmo, propor algumas idéias que possam auxiliar o regente no exercício de uma análise estratégica de sua atividade. De alguma forma (e esse é um estudo que se promete fascinante) a vida contemporânea coloca em dúvida alguns paradigmas que estão profundamente arraigados na nossa concepção de atividade coral. Naquela oportunidade, tratamos de temas como:

* o coro como fomentador da criatividade, da capacidade inventiva e da capacidade subjetivapara a aquisição de conhecimentos (cooperação);

* o coro como atividade criativa em grupo, que incentiva a divisão de conhecimentos, sua articulação e sua socialização;

* as redes de conhecimento demandando criatividade dos usuários, sendo o conhecimento um resultado da cooperação que se efetiva nessas redes;

* idéias sobre o processo pós-moderno: criativo e reticular / indeterminado e interativo;

* a valorização do próprio processo, ou seja, da potência de transformação nele contida (ensaio
e apresentação);

* customização; e

* o conceito de heterarquia – educação como atividade “horizontal”.

Não cabe neste presente artigo uma descrição extensa das idéias sobre a análise estratégica acima mencionada, mas gostaria ainda de fazer referência às diretrizes que as nortearam:

 * QUEM é o meu grupo?
 * ONDE ele este inserido?
 * Qual é meu PÚBLICO?
 * Como lido com o TEMPO?

A partir desses pontos, pudemos começar a formar opiniões sobre ferramentas de trabalho (ensaio, repertório, recrutamento de cantores, tipos de técnica vocal, exercícios, instrumentistas, processos de educação musical, etc.) De certa forma conseguimos, naqueles dias, refletir um pouco sobre o porquê de nossa arte, ao invés do como.

Peço desculpas aos leitores que esperavam nesse breve artigo considerações a respeito de padrões gestuais, afinação, respiração ou técnica vocal (afinal, esse é um texto escrito para a Associação Paulista de REGENTES CORAIS). Entretanto, talvez por força do hábito acadêmico, preferi propor questões ao invés de fornecer respostas. Assim fico mais confortável, pois não creio na eficácia de receitas pré-estabelecidas, manuais ou tratados que lidam com nossa arte de forma racional, como se seus autores fossem donos de todas as respostas. Apesar dos longos anos que nos separam, continuo a fazer coro com o Vô Arthur: nossa arte tem por finalidade maior inspirar as pessoas. Por isso, trabalhar levando em consideração a sociedade à qual pertencemos faz toda a diferença.
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(i) Leonard B. Meyer, Music, the arts and ideas: patterns and predictions in the twentieth-century culture (Chicago: The University of Chicago Press, 1994) 89-91.

(ii) Peter A. Topping, Liderança e Gestão (São Paulo: Campus, 2002) 44.

(iii) I Workshop de Regência Coral, promovido pela Oficina Coral do Rio de Janeiro em convênio com o Conservatório Brasileiro de Música, de 3 a 7 de setembro de 2004.

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